A crescente distância entre as variantes do português faladas no Brasil e em Portugal tem reacendido debates sobre uma possível emancipação linguística da forma brasileira do idioma. Termos como “geladeira”, “ladeira” e “rapariga” carregam sentidos distintos nos dois países — enquanto os portugueses utilizam “frigorífico”, “inclinação” e “moça”, respectivamente. Tais diferenças, moldadas ao longo de mais de 500 anos desde o início da colonização, suscitam discussões sobre a possibilidade de uma cisão.
O linguista português Fernando Venâncio é um dos que defendem que, em duas gerações, o “brasileiro” poderá ser formalmente reconhecido como um idioma autônomo. Em 2024, durante o lançamento de seu livro Assim nasce uma língua, publicado pela editora Tinta da China, Venâncio afirmou que a separação entre as normas linguísticas brasileira e europeia é um processo inevitável. “Não se trata de previsão: a cada dia, o afastamento se intensifica. A lusofonia homogênea é um mito”, declarou. Ele sustenta que as diferenças abrangem fonética, sintaxe e estrutura frasal, indicando uma tendência de bifurcação. No entanto, essa leitura não é consensual entre estudiosos.
A diversidade do português no mundo
O idioma português é oficialmente adotado por nove países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. É também cooficial em Macau, região administrativa especial da China. Com cerca de 280 milhões de falantes, a língua ocupa o quarto lugar entre as mais faladas globalmente, de acordo com o Instituto Camões — sendo o Brasil, com 212,6 milhões de habitantes, o principal polo de usuários.
No plano escrito, o português busca certa uniformidade normativa, algo que, segundo a professora Gladis Massini, do Departamento de Linguística da Universidade Estadual Paulista (Unesp), não se estende à oralidade. “A fala evidencia marcas de identidade geográfica, etária e social. A diversidade linguística é sinal de vitalidade”, pontua. Dessa forma, consolidaram-se os chamados brasileirismos — termos, construções e usos específicos do português falado no Brasil.
O debate sobre a separação entre português brasileiro e europeu remonta ao processo de independência do Brasil em 1822. O linguista Ataliba T. de Castilho observa que, já à época, discutia-se a criação de um idioma próprio como forma de afirmar a soberania da nação recém-emancipada.
Uma língua forjada na miscigenação
O português transplantado para o Brasil no século XVI estava distante da norma culta da metrópole. “Os primeiros falantes eram degredados, sem capital simbólico ou político”, recorda Massini. A miscigenação com centenas de línguas indígenas — estima-se que cerca de mil eram faladas por até cinco milhões de nativos — e, posteriormente, com idiomas africanos, especialmente os da família banto, como os trazidos por escravizados da atual Angola, foram decisivos para a formação da variante brasileira.
Essa complexidade sociolinguística originou um português marcado por influências múltiplas. Palavras como “mandioca”, “tatu”, “cafuné”, “banguela” e “fofoca” evidenciam essa mistura. Até o século XVIII, prevalecia no território a chamada Língua Geral, baseada no tupi e mesclada ao português.
A docente Clara Pinto, da Universidade de Lisboa, destaca que o português brasileiro não é homogêneo. “Há uma multiplicidade regional intensa — como o ‘r’ caipira —, o que impede tratá-lo como unidade coesa.” Ela ressalta ainda que o português falado no Brasil manteve traços clássicos abandonados em Portugal, como o uso do gerúndio, e incorporou transformações, como o uso do pronome “você” no lugar de “tu”, geralmente sem a conjugação verbal correspondente.
Entre a divergência e a unidade
A hipótese de uma eventual independência linguística é vista com cautela por especialistas. Embora Fernando Venâncio preveja um desmembramento, Gladis Massini adverte que inteligibilidade mútua não é o único critério. “As diferenças lexicais e gramaticais ainda não configuram ruptura suficiente. A padronização do português europeu permanece forte no ensino escolar brasileiro.”
Segundo Clara Pinto, o reconhecimento de um novo idioma depende menos da avaliação técnica de linguistas e mais de circunstâncias políticas e socioeconômicas. “Não há um conselho de linguistas que determina isso. São os contextos políticos e culturais que definem se há ganho estratégico em declarar uma língua independente.”
Influência brasileira em Portugal
Enquanto a separação oficial entre as variantes não se concretiza, linguistas observam um fenômeno inverso: a absorção crescente de brasileirismos pelo português europeu. O fluxo de conteúdos culturais — novelas, músicas, cinema e redes sociais — parte majoritariamente do Brasil em direção a Portugal, invertendo o vetor histórico do colonialismo linguístico.
“Isso tem alterado ligeiramente o português falado em Portugal, que começa a incorporar traços da variante brasileira, gerando polêmicas. Muitos portugueses reagem mal à ‘importação’ de léxico e expressões do Brasil”, analisa Clara Pinto.
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