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“Valdemar, o Passador”

Por Vaner Marinho

por Editoria Democracias

*História vencedora do prêmio “Revelando os Brasís”do Ministério da Cultura, patrocinado pela Petrobrás.


São favas contadas. É só se aproximar o dia de São José, que as águas do Rio Tocantins começam engrossar, alisando o seu leito. O mestre Valdemar passador, sempre de óculos escuros e cigarro aceso, com a camisa desabotoada e as pontas amarradas à cintura, vislumbra com os seus mais de 60 anos como ribeirinho, mais uma enchente do velho Tocantins, margeando a cidade de Porto Franco-MA. Todos os domingos pela manhã, bem cedo, tínhamos uma conversa a respeito do dia a dia do grande rio.  A pergunta de sempre: Mestre Valdemar, o bicho parece que ta subindo a rampa? Aí ele faz aquela cara de deboche, sem olhar para as águas, e responde: “Que nada, esse aí não vai mais pra lugar nenhum! Não tem mais enchente como antigamente! Enchente boa é aquela em que o rio vem lambendo por fora, inundando capinzais, carregando toras de pau, bicho morto. Só tenho fé quando se vê aqueles bolos de formigas descendo rio abaixo. Aí é ano de peixe gordo”!

Ele é a própria alma do Rio. Sabe tudo a seu respeito. Por muitas vezes, teve que se retirar às pressas por conta de enchentes repentinas. Com o passar dos anos, foi aprendendo a conviver com ele, de modo a prever qualquer alteração no volume das suas águas. Com um simples olhar, ele sabe perfeitamente avaliar o seu comportamento, nas enchentes e nas vazantes. É como se fossem cúmplices de tudo que acontecia.

Valdemar, cujo nome verdadeiro é Aldemar Barros, nasceu no lugar chamado Parasempre, às margens do córrego Pitombeira, município de Grajaú (MA), no ano de 1924. Em junho de 1944, chegou pra morar por aqui, vindo com a mãe e mais 6 irmãos, andando a pé com um saco nas costas.  Começou logo a se familiarizar com o rio. Daí a pouco, já fazia travessia de passageiros entre Porto Franco-MA e Boa Vista-GO, num percurso de mais de 1.000 metros, em pequenas canoas com capacidade para quatro pessoas, tendo como instrutor, o velho Crispim e outro passador chamado Aristóteles. Do outro lado, na Boa Vista, reinava o grande Jovino, homem de larga experiência em viagens pelo rio a qualquer hora do dia ou da noite.

Depois de alguns anos remando canoa, precisamente no dia 12 de Janeiro de 1954, Valdemar adquiriu um motor Penta de 4,5 cavalos que adaptou em um casco com capacidade para oito passageiros, e posteriormente, trocou o mesmo por um Archimedes de 12 cavalos que de tão veloz, “fazia correr águas dos olhos da gente”. Para maior comodidade dos passageiros, passou a trabalhar com motores dieseis de centro, mais econômicos e robustos. Foi aí que ele comprou um Stoll de 15 cavalos do Sr. Hélcio Queiroz de Carolina e por muitos anos, tirou o sustento da família numerosa fazendo a travessia de passageiros entre Porto Franco e Boa Vista.

Valdemar, com os seus 82 anos, ainda tem uma memória privilegiada. Ele lembra com detalhes, os anos românticos dos grandes “motores”, numa época que não existiam estradas e o transporte de cargas e passageiros era feito através dessas grandes embarcações. Esses barcos, construídos geralmente em Belém, possuíam todos os compartimentos necessários para o uso tanto de cargas como de passageiros, como o convés, o porão, a sala de maquinas, as camarinhas, a cozinha e cabine de comando. Existia também, a tripulação: O Piloto, o Prático, Maquinista, o ajudante do Maquinista, o Cuca, o Rancheiro, entre outros.  Ele narra com precisão, as características de cada um deles:

PEDRINHO, Barco de propriedade dos Santos & Irmãos, equipado com potente motor KILL de 45 Cavalos, com capacidade para 20 toneladas de carga e era pilotado pelo comandante José Veiga.

LEÃO DA AMÉRICA, famoso barco de propriedade de G.Franco & Irmãos, os atuantes irmãos Guilherme e Otavio Franco, com comercio em Porto Franco, tinha no seu interior, o famoso motor ATLAS de 80 Cavalos com capacidade para 30 toneladas de carga.

FREI GIL, outro grande barco que fez historia nas águas tocantinas, também de propriedade dos irmãos Franco, era impulsionado por um robusto motor OTHO, de 36 Cavalos e carregava 15 Toneladas de carga bruta. No seu comando, o alegre piloto Dionísio.

ALMIRANTE SALDANHA, de propriedade dos Santos & Irmãos, equipado com o moderno motor VOLUND de 50 Cavalos para suportar o peso de 40 Toneladas. O seu Comandante era o experiente piloto Gregório Santana.

RIO GRANDE, era um barco construído por Valdemar Cunhã em uma oficina às margens do Ribeirão Lageado, de propriedade do Sr. Chico Queiroz, comerciante de Tocantinópolis. O seu motor era um BOLINDA de 50 cavalos, muito barulhento, com capacidade para 15 Toneladas de carga.

FLORIANO, também de propriedade de Chico Queiroz, empurrado por um potente motor KILLde 30 Cavalos de potencia . Ele transportava 20 Toneladas de carga.

COUTO DE MAGALHÃES , o rei dos barcos. De propriedade dos irmãos Franco, equipado com um moderno e potente motor CATERPILLAR de 120 Cavalos, com capacidade para 25 Toneladas de carga. Era comandado pelo zeloso piloto Manoel Lima, que sempre trajava camisa branca com gravata e Kep com o brasão da Marinha Brasileira. Não permitia que ninguém subisse ao convés, sem antes, limpar bem os pés. O interior do barco mostrava os instrumentos e mobília na mais perfeita ordem. Conta Valdemar, que o Couto de Magalhães era o mais veloz, o mais silencioso e o de motor mais potente. “Quando ele navegava no beiradão da Boa Vista, o seu banzeiro de tão forte, fazia canoa quebrar a corda em Porto Franco.

Existiam outros barcos importantes na navegação do Tocantins, como os de propriedade do Sr. Darci Marinho: Ribamar, Miramar, Itamar e Deusimar. Esse ultimo, equipado com um motor BUDA de 20 Cavalos.

De fim trágico, o grande barco CARIOCA, equipado com um CATERPILLAR de 80 Cavalos que naufragou com suas 40 Toneladas de carga na cachoeira de Tapiquariquara.

Esses grandes barcos desciam o Rio com destino a Belém, com escalas em Marabá e outros lugarejos, transportando passageiros e carga composta de Babaçu, Couro de Boi, Peles de animais diversos como Caetetú, Veado e Gato Maracajá.

Na volta, traziam açúcar, tecidos, querosene, sabão em barra, cerveja e refrigerantes.

Valdemar Passador chega a umedecer os olhos, quando começa a falar desse tempo. Ele sente saudades das aventuras vividas nas águas do seu grande amigo Tocantins. Todos os seus filhos homens, também abraçaram a profissão de passador. Ele já não faz mais travessias. Fica o dia inteiro no seu pequeno comercio contando historias do Rio. Repudia a ação dos homens que teimam em alterar a natureza das águas. Fica incontrolável quando fala das barragens que, controladas pela mão do homem, determinam o fluxo das enchentes e vazantes. Não tolera olhar pro Rio e ver a enchente de água limpa, como se fosse mês de junho. Pra ele, nas cheias, as águas têm que ser “barrentas”, pois indicam enchente natural, das correntes dos igarapés e das chuvas mandadas por Deus.


*História vencedora do prêmio “Revelando os Brasís”do Ministério da Cultura, patrocinado pela Petrobrás.


Sobre o autor

Vaner Marinho é o atual Sereníssimo Grão-Mestre da GLEMA, escritor, historiador, cronista, músico, enquanto secretário de cultura, foi articulador de projetos culturais inovadores. Participou de editoriais em revistas institucionais (como na revista Intergestões Administrativas da GLEMA), colaborador de pesquisas acadêmicas, depositário da memória coletiva de Porto Franco (MA) e região e agente ativo na preservação dessa memória. Foi coordenador municipal do Programa “Cidade Empreendedora” – parceria do SEBRAE com o governo estadual, ex-gerente de negócios do Banespa e colunista do Portal Democracias.


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